sábado, 19 de junho de 2010

A cidade e Yves Tadeu







Por mais cinza que sejamos, somos ainda amarelos.
Ou azuis. Ou vermelhos.

Vejo isto, muitas vezes, não no meu olhar, mas no foco do outro, na lente que despe a cidade já nua-crua, qual tripa exposta e aberta que finjimos não ver.

Afinal, somos glamurosos e, no fundo, mesmo, desejamos o brilho do gliter novo despedaçado na noite em que escondemos nossa imperfeição.


E tanto queremos a exatidão do Photoshop, a vida maquiada no seu mais profundo milímetro, o gene projetado, o trem-bala em vidro e aço azul ( e sem motorista ... ), a pontualidade, o cronograma, o regular previsível eficiente.


Somos blindados - blinded pela ciência. E pela promessa dos fantásticos copies - pastes. E deletes.

Recortes, reparos, reimplantes, retoques, retraços.


Mas é - e também assim o é - na sobra da cirurgia urbana, estripada pela jura da Gothan City reluzente, que se nos revela a entranha devastada, a cidade profanada.


E somos então surreais e expressivos - nistas, dadaizados fragmentos de cubos, chapados restos que escondemos um dia.


A cidade segue tatuada, marcada por uma vida que não vimos acontecer. E se revela, traidora, despindo-se para outros olhos. E naquele que lhe sabe ler-ver, revela-se de novo para mim.


Por mais minimalisto - recicláveis, sustentáveis e auto-limpantes que sejamos, somos ainda, e mais ainda, genomas de um projeto deformado.


texto : Sônia Andrade
imagens : Yves Tadeu

* Agradeço aqui, publicamente, ao fotógrafo Yves Tadeu que me revela, em suas imagens, uma cidade sedutora que para ele se despe despudoradamente todos os dias.
















terça-feira, 2 de março de 2010

garo(t)a, sou chuva e tempestade













muitas vezes, na função e no ofício da arquitetura
dentro da metrópole megalópole urbanópole
observo o construído que sucumbe
desfaz no olhar resignado
en-face en-frenta o evento não controlado

o profanado arreganha seus dentes e se ergue
se confunde me confunde confunde
os parâmetros possíves do edificado

danço esta dança que nos engole e nos submerge
retratos fluidos falidos de nossos desejos pendulares
que traem
traindo-nos a nós mesmos



garo(t)a, sou chuva e tempestade

tem dias em que sou convicta e convincente.
convencida
me desabro na minha certeza

há dias em que meu traço é firme,
como um tiro partido de um ponto : a minha mira
ao seu fim : a minha vítima.
o alvo único e fixo, imóvel, certo

eles observam meu disparo
seguidores do olhar frouxo

que delícia...
sorrio no vazio
e danço mais.

me vejo refletida no meu improviso
solo, tão solo. acompanhado e solo.

e levo arrasto giro sapateio e levo arrasto giro sapateio e levo arrasto giro sapateio e levo arrasto giro sapateio e levo arrasto giro sapateio e levo arrasto giro sapateio levo arrasto giro sapateio

sorriso aberto em navalha
movimento rasgado no espaço
qual tsunami e olho de furacão

sou vendaval
sou máscara crua que molha, fria, o fundo desejo de me escoar

e me esgoto
sumo pelas frestas tão finas tão largas
absorvida no impermeável solo

leve evaporo
levevaporo
leve me levo por onde escorregar a
minha alma que armada
aguarda meu novo tempestear



ass. Sônia Andrade

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

apôios (in) sustentáveis















em tantas vezes foi buscado o apôio
tantos planos, projetos, métodos e medidas
e o traço se desfez, abstraiu-se da sua materialidade, libertou-se da fórmula única, da sua função

onde se procurou o suporte, a renúncia
onde se exigiu o que se firma, o incorpóreo e tão vago

e, se vejo hoje estas estruturas em suspenso balanço,
corpos arquitetônicos livres das regras tão simples da sua gravidade,
imagino minha alma também suspensa
flutuando como vão protendido
sem muleta ou pilar, prumos, traveses ou andaimes
cabrestos curtos de madeira, concreto, metal. ou tão só apoios

tão fundamentais quanto dispensáveis
incompreensíveis para o olhar
são o desafivelar da minha alma
que, por vezes, também ousa planar no espaço
fingindo independência do que lhe (in) sustenta

insustentados
insustentáveis
in susten tudo
em sus penso tudo
suspensa em tudo
penso tudo



Imagens

Sônia Andrade – varanda de uma residência na rua Rússia
Danilo Rabak – obras de uma residência no seu bairro


Ass. Sônia Andrade

domingo, 3 de janeiro de 2010

considerações de fim de dezembro no mercado de Recife























sempre me perguntei como iria lapidar sentido e olhar sem manter meus canais absolutamente desinfibulados.
sempre me perguntei como iria perceber os sinais que me brotam naqueles dias que dividem meu tempo em tantos antes e depois, como paisagens recortadas por terremotos, sem procurar a intensa conecção entre meu corpo e a experiência espacial.


de um lado a infância e tudo que possa representar uma vida passada.
do outro, uma incomensurável e obscura distância a percorrer no tempo que ainda falta viver”
(“As Brasas” de Sándor Márai).



existem dias em que vivo experiências onde a linguagem simbólica da vida se apresenta de tal forma que tudo é advertência, tudo é indício, tudo é sinal.

sinto em mim o simulacro de um outro palco da existência, como se vindos de outros lugares, de outras vidas.

nestes dias, me deixo miscigenar nas diferentes formas do dispor, nos tantos meios de arranjar, nos diferentes gestos que definem tantos e tão diversos caminhos do usar e do desfrutar do espaço.

nestes dias, com gosto, me deixo brutalmente invadir por universos profanados, desabridos e convulsivos, delirantes, como que compostos em climas acres e úmidos, tão doces, tão lascivos.
acho que são estas tardes quentes dos trópicos. deve ser.
nestes dias, pergunto : onde foi desenhada a linha que partiu a regra do caos, a noite do dia, o senso do insólito?

nestes dias, pergunto : qual salvação possível para estas formas dispostas em redemoinho?
qual o possível despertar para os espaços que se formam em mim como aqueles sonhos insones, delírios quase obsessivos, febris, dos quais nunca acordo de fato, me perseguindo por anos.
netes dias, afinal, sei, sempre vão estar ali, me ocupando com seu poder de me amotinar, me atrair e me tomar.

nestes dias, não sei mais responder onde ficou a concretitude do que é de fato considerado possível, o limite do humano, a real separação entre cidade e selva, certo e errado, são e adoecido, ciso e loucura.
nestes dias, sou como médico e monstro num mesmo lugar.

ass. Sônia Andrade
imagens : Giorgio Giorgi Júnior - Mercado Central de Recife

terça-feira, 17 de novembro de 2009

sinapses emendas


ai que hoje eu quero é o lápis macio e firme, escorregando na folha lisa.


ela suplica pelo texto, que já é seu, de tamanho justo e forma tão incorpórea quanto durável, possuindo gentilmente toda sua página, esta casa aberta para a diversão.


depois, preciso de energia, sem falta ou apagão.


preciso da sinapse dos cabos tensos, de todos os condutores elétricos, eletrificados, vias e caminhos nervosos.

preciso irromper no espaço imaterial os estilhaços dos juízos, sonhos, planos e imagens que ouso aqui confessar.


mas, se esta emenda me falha agora! ai se cai a conecção!

como satisfazer o caminho das idéias que querem drenar nestes meios já tão suturados e infibulados, fios estrangulados esquecidos no quarto escuro...


que pavor destes feixes débeis e fragmentados, alterados, defeituosos, cordas onde avançam imensidões de desejos que querem ser fato.

Imagem – “ entrada de energia do edifício na rua bela Cintra esquina com avenida Paulista, onde fui buscar minhas passagens para Recife”,
Sônia Andrade

ass. Sônia Andrade
para o meu leitor primeiro

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

patologia


“...como um doente acostumado afinal às dimensões espaciais de seu mal, vivia naquele aposento, que parecia construído sob medida para ele”.
As Brasas”, Sádor Márai

“...há um sujeito, mas ele não é, talvez seja só uma promessa. o que vai sendo, indo como pode”.
O nome do Cuidado”, Léo Lama
http://www.youtube.com/watch?v=R9guB_9O-YY

às enfermidades espaciais dispenso sempre os meus mais sinceros cuidados.
reparo de longe, com olhar de desvelo exclusivo, as deformidades, as decomposições, e tudo aquilo que carece do tão cultuado bom senso, da tão procurada saúde estética.

e aí começa o deleite da minha brincadeira...
inverto, cruzo, oponho, espelho papel e personagem da cena. doentes e patologias.

encontro, aqui e ali, neste ofício, um maníaco guloso que tudo quer ocupar, deflorar, desfrutar. tira da frente o que não lhe convém; ou engole; ou devassa. mas sempre se apossa. é a célula aumentada, sem estrutura, parasitária e maligna.

do outro lado, tão oposto quanto igual, o paciente, em sua acanhada fragilidade.
por vezes neurótico, dá valor a sua concretude e se agarra às “dimensões espaciais do seu mal”.
e ali fica. e ali incomoda. tortura. atormenta. vive.

e, tal qual tumor que não vai, fica.
se torna parte do novo corpo que, agora e para sempre, está condenado a ser assim. como catarata crônica que obscurece a paisagem e turva a vista panorâmica.

qual a medicina para a metástase das células que formam esses nossos elementos arquitetônicos? este corpo construído que se alterou de tão usado e abusado.

“qual é a minha medicina, qual é a sua medicina?”. (Léo Lama).

ass. Sônia Andrade
imagem : “vista da área comum de um edifício, com o vizinho que não quis vender seu terreno”,

Sônia Andrade

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

entulho e devastação











me dói no olho, com gosto.


e me seduz, lá no fundo, este senso da devastação, de paladar tão acre e desabrido.


bizarro, pungente, como que pontiagudo, me espicaça.


de um sabor tão próprio, me desperta nesta onda de novas qualidades.



o que pode fazer-se acompanhar de um furacão, de um tsunami? esta estética de cores duma mesma paleta, composições tão bem articuladas, climas verbosos.




quem ousa multiplicar, espelhar, confirmar tudo isso?


pois sei que, se somos invadidos, invadimos com a mesma sem-cerimônia.



e queria saber, onde é cabeça e onde é o rabo desta estória? porque, para mim, sempre vem a imagem da cobra que engole a própria cauda, este ciclo que não termina, começo e fim que se refletem, faces polidas e opostas duma mesma cena.



penso em como esta produção humana de objetos móveis e imóveis é gerada sob uma falsa espectativa da organização de idéias e ideais. as obras, objetos e cenas por fazer, as já feitas e as destruídas, todas no mesmo saco... nosso ofício será sempre o de nos organizarmos e de nos devastarmos.



profanos, profanamos, somos profanados.



quem colocou este entulho na rua do meu escritório? ah dona, não é entulho, não senhora...é o material aí da concessionária..ô, ô, ô dona, a senhora é da concessionária? porque não pode tirar foto aí não dona! ai meu filho, sou sua vizinha, pago IPTU desta rua e se você não quer que eu tire foto, tira esta coisa daí.
mas é agora, tá me entendendo?
... olha, sei que você vai me achar meio louca, mas acho isso tudo aqui, esta sua bagunça, muito linda demais da conta. por isso estou aqui, por isso quero a foto.


e não é que descubro que do entulho nascem flores?


Imagens

Robert Polidori – Tupelo Street, Nova Orleans, Lousiana, EUA, 2005.
Sônia Andrade – obras da linha 4 do metrô, São Paulo.


Ass. Sônia Andrade
aos segredos que as palavras são incapazes de contar.